Há quarenta anos o país fervilhava de entusiasmo e de esperança, e eu era um jovem que cavalgava com os outros a onda de euforia que atingiu o seu pico no primeiro de Maio.
Em contraste com essa memória, as comemorações oficiais de Abril converteram-se num ritual balofo, a que não faltou a proposta anedótica de Assunção Esteves de procurar um mecenas para as despesas. A romagem dos pares da República a S. Bento mais parece a visita a um tio chato em dia de aniversário: fazem os elogios de estilo e saem aliviados do dever cumprido.
Só nas ruas, nas tertúlias e nalguns media se sentiu um pouco da memória criadora daquele dia original. Pouco demais para o sobressalto que se nos exige face à degradação da vivência democrática. Esta degradação é um processo insidioso que nos embota a capacidade crítica através de habilidosas manipulações conceptuais.
A caça aos culpados
A democracia assenta no contrato social. Somos uma comunidade. Contribuímos de acordo com as nossas possibilidades e recebemos na medida das nossas necessidades, num processo de cidadania transparente, sob um governo da nossa escolha. O povo, que é o soberano, espera que o governo, especialmente nos tempos difíceis, alimente e consolide a coesão da comunidade.
Ao contrário, o governo em funções dedica-se despudoradamente a alimentar todo o tipo de guerras e invejas mesquinhas, sendo poucos os grupos sociais poupados a esta sanha de assassínio moral.
Os funcionários públicos são esses parasitas que vivem confortavelmente a expensas do contribuinte e do défice do orçamento. Consegue-se passar a ideia absurda de que o médico ou o professor no serviço público é um fardo para o contribuinte, mas se fizer o mesmo trabalho num serviço privado é um esforçado competidor e pagador de impostos.
Os reformados têm o descaramento de se locupletarem com as pensões derivadas dos seus descontos, sem se condoerem dos que trabalham e descontam. São uma despesa perfeitamente improdutiva. Diz-se que é preciso cortar aos de agora e avisar os do futuro de que o sistema é insustentável. Um discurso perfeito para destruir a ideia de solidariedade, encorajar a revolta contra a segurança social pública e preparar o terreno para os seguros privados. Os mais desavergonhados chegaram ao ponto de chamar injustiça geracional a esta teimosia de os velhos receberem sem trabalhar.
Mas não são apenas esses os inimigos do "ajustamento". Também os trabalhadores do setor privado vivem acima das possibilidades e impedem os empresários de serem competitivos. Comprimindo os salários e aumentando os impostos o governo realiza o milagre de exportar mais e de importar menos. Estão a ver como é fácil? E quase não dói. E se doer, emigrem. Também dá jeito ao equilíbrio da balança de pagamentos.
Doentes, deficientes, estudantes, desempregados, beneficiários do RSI, todos eles devem, desde o levantar ao deitar, meditar nesta grande verdade: sou um peso para o contribuinte, tudo o que recebo devo-o à generosidade do governo que arduamente regateia uns trocos à troika para gastar comigo.
Não está esgotada a lista dos culpados. Há os jovens que se acomodam em vez de emigrarem ou arranjarem uns trocos em trabalhos desregulados. Os artistas que produzem obras que ninguém quer ver. Os cientistas que investigam coisas que ninguém entende. Os políticos e sindicalistas que tudo criticam e assustam os mercados. Exceptuam-se os políticos que dizem ámen e reclamam uma unanimidade que tranquilize os mercados.
Glória aos heróis
Com tantos culpados da crise e tantos recalcitrantes contra os sacrifícios, é uma tarefa heróica fazer com sucesso o que o governo agora chama "ajustamento" e no início chamou mais ajustadamente "empobrecimento". É uma epopeia só comparável, na mente do impagável Paulo Portas, à gesta dos descobrimentos ou à revolução de 1640.
Estes heróis, todos os dias louvaminhados pelos sabujos do costume, têm nome.
Em primeiro lugar temos a troika, essa sagrada coligação de benfeitores que não se limitam a mandar-nos dinheiro à suavíssima taxa de 4 ou 5%. Eles vêm também religiosamente ensinar-nos a governarmo-nos como deve ser e a não voltarmos a cair nos vícios do passado.
Em segundo lugar temos este governo obstinadamente atento e obediente aos credores e fervoroso terapeuta dos nossos desvarios preguiçosos e gastadores.
Temos também os empresários, sobretudo os maiores, que têm a máquina oleada para criarem (e descriarem) emprego ao sabor do aproveitamento duma mão-de-obra desesperada.
Temos os banqueiros, que devemos amparar com os nossos impostos até conseguirem sair do rombo em que se meteram, ampararem os empresários e recuperarem os lucros de antigamente.
Temos os estrangeiros de visto gold que fazem o favor de nos comprar uns casarões acima das nossas possibilidades e talvez deem emprego a algumas empregadas domésticas.
É nesta democracia que nos deixámos encurralar.
Se não vemos alternativa, se não lutamos por alternativa, então o 25 de Abril é uma memória morta.