quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Sucesso!


Escrevo para não vomitar. Depois do ministro da Saúde ter prometido alguma moralização na escravatura da compra de horas pelos hospitais, leio no DN esta barbaridade. Uma empresa de trabalho temporário que, para se rir na nossa cara, se chama "Sucesso 24 horas", enriquece descaradamente com a conivência dum hospital público, o dinheiro do contribuinte e a exploração infrene dos profissionais de saúde.

É esta uma das maravilhas do nosso "ajustamento" competitivo, que já em tempos aqui denunciei.

É por habilidades destas que, como afirma um estudo do banco Crédit Suisse há dias divulgado, Portugal tem mais 10 mil novos milionários.

domingo, 15 de junho de 2014

As novas certezas


Habituámo-nos aos excessos de linguagem dos políticos, às afirmações definitivas e tonitruantes das suas verdades pessoais ou partidárias.

Sei que, uma vez por outra, os políticos aproveitam cuidadosas entrevistas para mostrar a sua face de cidadãos comuns, com as suas dúvidas e ansiedades.

O que eu desconhecia é esta nova moda das afirmações peremptórias de coisa nenhuma. Fartos de serem justamente acusados de mentirosos, inventaram a fórmula que lhes permite dizer e não dizer.

Complicado? Para nós, sim! Para um político, não!

No mesmo dia leio dois exemplos.

O ministro Poiares Maduro responde numa entrevista: "Não tenho dúvida nenhuma, podemos ganhar as próximas eleições". Estão a ver como é fácil? O adepto rejubila e o adversário treme. O Maduro não tem dúvida, as próximas eleições estão no papo. A mensagem passou. Mas ele só disse podemos, uma afirmação inteiramente verdadeira para qualquer partido que concorra a eleições democráticas.

Do outro lado da barricada, António José Seguro alinha pela mesma prudência socrática (de Sócrates, o grego: só sei que nada sei). Verberando o atrevimento do camarada António Costa em disputar-lhe a liderança, Seguro atira-lhe à cara com a sua certeza absoluta: "Agora que o PS tem quase a certeza absoluta de que ganhava as eleições". Há momentos em que Seguro mede bem as palavras. Outros nem tanto. Nesta passagem, excedeu-se na contenção. Aquele quase virou-lhe a frase do avesso. Uma quase-certeza é obviamente uma dúvida. A frase lógica é esta: "Agora que o PS tem dúvida de que ganhava as próximas eleições". Ou muda a afirmação, ou entrega o partido ao concorrente, ou não faz uma coisa nem outra e transforma a dúvida em pesadelo.



domingo, 25 de maio de 2014

Sou um europeu zangado


Nada tenho de original. Sou um cidadão europeu zangado.

Os pais fundadores da União Europeia lançaram as bases duma Europa pacífica, próspera e solidária que recuperasse o melhor da Pax Romana de há dois mil anos.

A globalização económica e financeira dos últimos trinta anos converteu o mundo numa arena especulativa e predadora. E a Europa, em vez de reagir como um bloco de resistência democrática à cupidez desregulada dos mercados, entrou no frenesim do salve-se quem puder.

Temos líderes cuja memória histórica começa no último boletim estatístico do Eurostat e termina nas cotações da bolsa desta manhã, e cujo horizonte futuro não vai além do próximo ato eleitoral.

Temos líderes que nunca são responsáveis por nada do que corre mal, mas inventam todos os pretextos para se exibirem ao lado dos vencedores do momento, seja nos negócios, nas artes ou no desporto.

Temos líderes dos países ricos que chamam preguiçosos aos países pobres e lhes ensinam paternalmente que se trabalharem mais e comerem menos também chegarão a ricos. 

Temos líderes dos países pobres que chamam benfeitores aos países ricos porque estes compram as suas empresas e emprestam dinheiro pelo preço que bem entendem.

Temos cidadãos que acham que o mundo é assim e não há volta a dar. Cidadãos que aceitam conformados o regresso ao sistema de desigualdades inatas, anterior à revolução francesa.

E temos cidadãos zangados. Cidadãos que infelizmente não se entendem quanto ao rumo a tomar. Mas sabem que o caminho não é este.

Sou um cidadão zangado. E hoje vou votar.

sábado, 24 de maio de 2014

A Europa de Juncker


Jean Claude Juncker, que presidiu ao Eurogrupo e é agora o candidato do PPE (Partido Popular Europeu) à presidência da Comissão Europeia, esteve em Portugal a apoiar a campanha dos seus correligionários do PSD e CDS.

Tinha-o por uma pessoa respeitável, até ao momento em que o ouvi afirmar no  discurso da Trofa: "Eles (os socialistas) lembram-me um dos vossos compatriotas mais prestigiados: Cristóvão Colombo. Quando partia nunca sabia para onde ia, quando chegava nunca sabia onde estava, e era o contribuinte que pagava a viagem".

Como velho português fiquei abismado. Primeiro com os aplausos dos presentes. Depois com a complacência dos comentadores que brincaram com a ignorância de Juncker em relação à nacionalidade do genovês. Poucos repararam que dentro deste embrulho de ignorância perdoável vinha o imperdoável veneno com que a Europa do centro e do norte nos vem matando: somos atavicamente uns desgovernados a necessitar de tutela alheia.
Não me incomodou a ignorância, mas incomodou-me, e muito, a arrogância e o insulto de um estrangeiro, na nossa própria casa. Os descobrimentos são o cimento do nosso orgulho nacional. A eles devemos que o português seja hoje a língua materna de centenas de milhões de pessoas, e que haja traços históricos da cultura portuguesa em todos os continentes. Ao empreendedorismo (não é assim que se diz?) das coroas portuguesa e espanhola deve a Europa ser hoje a referência civilizacional do mundo (para o bem e para o mal).

Compreendo que Juncker se incomode com esses tempos ignominiosos em que o Estado tinha uma visão estratégica e comandava a economia. Mas ao menos podia calar-se.
Ao insultar Colombo, Juncker denegriu despudoradamente toda a escola henriquina de navegação, que nos deu Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Álvares Cabral e muitos insignes geógrafos e demais cientistas que os aconselharam e acompanharam.

"Não sabia para onde ia... e era o contribuinte que pagava a viagem". Eis o auto-retrato do sr. Juncker e da generalidade dos atuais dirigentes europeus, a  quem pagamos principescamente para nos levarem a um perigoso beco.

Tivéssemos nós líderes da têmpera dos navegadores quinhentistas e dos reis que os financiaram.

 Adenda

Acabei de tomar conhecimento desta pérola que Juncker escreveu no seu twitter em 20 de Maio: "As pessoas são tão importantes como as mercadorias e o capital. Se estes podem circular livremente, também as pessoas devem poder". (People are just as important as goods and capital. If they can move freely, so people be able to).

Provavelmente incomodado com as críticas à secundarização das pessoas, este senhor vem brilhantemente defender-se: ora essa, uma pessoa não tem menos direitos do que um saco de batatas!
Por mim, talvez prefira ao sr. Juncker o saco de batatas na presidência da Comissão Europeia. Fazia o mesmo trabalho, que é dobrar-se perante o poder germânico, e ficava mais barato.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Ei-los que partem


Olho à minha volta e vejo o meu país destroçado. Vejo partir mulheres e homens de todas as idades, em busca do pão, reeditando o êxodo que testemunhei nos anos sessenta da minha juventude. Vejo partir os jovens que esforçadamente se graduaram nas nossas universidades e vão oferecer a governos mais prósperos o seu saber e o seu suor.

À dor da falta de esperança, que nos atinge enquanto comunidade, juntam-se demasiadas vezes as lágrimas amargas da despedida dos que nos são queridos.

Como homenagem a todos os que partem, publico o "recado" que entreguei à minha sobrinha no dia em que emigrou para a Alemanha, no exercício da profissão de enfermeira que aqui lhe é recusado.

 Sugestões de bagagem


Na tua mala
Leva sorrisos
Para doar
A quem tu amas
A quem te acolhe
A quem tu cuidas
A quem partilha
O teu labor
E o teu lazer.

Na tua mala
Leva esperança
P’ra semear
No teu trabalho
Na tua casa
Nos teus amigos.

Num saco informe
Deixa perdidas
No aeroporto
Toda a amargura
Todo o temor
Toda a tristeza.

Num cofrezinho
Muito juntinho
Do coração
Leva escondidas:
Uma lágrima
         de saudade,
A autoconfiança
E a teimosia
         de ser feliz.

 Se mesmo assim
 A alma doer,
 Tens de analgésico
 O carinho imenso
 Do nosso abraço.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

O cinismo continua


Quando escrevi o meu post anterior ainda não tinha ouvido a orquestra de ministros que veio anunciar o DEO (documento de estratégia orçamental).

Afinal a estratégia é sempre a mesma: tirar daqui e pôr ali, sempre aos mesmos tansos indefesos. Mas com aquele requinte cínico de atiçar as vítimas umas contra as outras.

A conferência de imprensa dos ministros parecia uma récita de jograis. Dizia um (ou uma, não me lembro bem e não tenho estômago para tornar a ouvir):
- Vamos reduzir o corte que fizemos nas pensões superiores a mil euros. Vai ser definitivo, deixa de chamar-se contribuição extraordinária de solidariadede e passa a ser simplesmente a contribuição de sustentabilidade. 
E baba-se de contentamento com a sua própria criatividade, como quem diz: Estão a ver, como somos bonzinhos; cortamos para sempre, mas cortamos menos!
Acrescenta outro, pressuroso:
- São 38 milhões que deixamos ir por água baixo para agradar ao tribunal constitucional...
 Agora é a vez doutro artista:
- Mas não pensem que somos irresponsáveis a ponto de desequilibrar o orçamento. Sabem onde vamos buscar o dinheiro? Aos que trabalham: mais 0,2% da TSU dos trabalhadores; e a todos os consumidores: 0,25% de IVA.

Os ministros-artistas fazem uma pausa e um riso sardónico. Estão à espera de que os jornalistas percebam as novidades. E que novidades! Todos os que trabalham, incluindo os que ganham o salário mínimo, vão contribuir com uma parte do seu salário e do IVA das suas compras  para aliviar o sacrifício dos que têm reformas superiores a mil euros.

O subentendido é evidente: Estáveis com tanta peninha dos velhos! Pois aí tendes! Agora não vos queixeis! Ou pensáveis que íamos mexer no precioso dinheiro dos empreendedores? A esses já baixámos o IRC e vamos dar outras benesses.

Na mesma tarde desta conferência de imprensa, o presidente distribuía em Belém condecorações a um seleto grupo de atuais e antigos serventuários. Um conclave cavaquista que serviu para mais um sermão sobre a necessidade de consenso quanto aos sacrifícios do povo e as facilidades às empresas.

A bom entendedor...

Degradação da democracia


Há quarenta anos o país fervilhava de entusiasmo e de esperança, e eu era um jovem que cavalgava com os outros a onda de euforia que atingiu o seu pico no primeiro de Maio.

Em contraste com essa memória, as comemorações  oficiais de Abril converteram-se num ritual balofo, a que não faltou a proposta anedótica de Assunção Esteves de procurar um mecenas para as despesas. A romagem dos pares da República a S. Bento mais parece a visita a um tio chato em dia de aniversário: fazem os elogios de estilo e saem aliviados do dever cumprido.

Só nas ruas, nas tertúlias e nalguns media se sentiu um pouco da memória criadora daquele dia original. Pouco demais para o sobressalto que se nos exige face à degradação da vivência democrática. Esta degradação é um processo insidioso que nos embota a capacidade crítica através de habilidosas manipulações conceptuais.

    A caça aos culpados

A democracia assenta no contrato social. Somos uma comunidade. Contribuímos de acordo com as nossas possibilidades e recebemos na medida das nossas necessidades, num processo de cidadania transparente, sob um governo da nossa escolha. O povo, que é o soberano, espera que o governo, especialmente nos tempos difíceis, alimente e consolide a coesão da comunidade.
Ao contrário,  o governo em funções dedica-se despudoradamente a alimentar todo o tipo de guerras e invejas mesquinhas, sendo poucos os grupos sociais poupados a esta sanha de assassínio moral.

Os funcionários públicos são esses parasitas que vivem confortavelmente a expensas do contribuinte e do défice do orçamento. Consegue-se passar a ideia absurda de que o médico ou o professor no serviço público é um fardo para o contribuinte, mas se fizer o mesmo trabalho num serviço privado é um esforçado competidor e pagador de impostos.

Os reformados têm o descaramento de se locupletarem com as pensões derivadas dos seus descontos, sem se condoerem dos que trabalham e descontam. São uma despesa perfeitamente improdutiva. Diz-se que é preciso cortar aos de agora e avisar os do futuro de que o sistema é insustentável. Um discurso perfeito para destruir a ideia de solidariedade, encorajar a revolta contra a segurança social pública e preparar o terreno para os seguros privados. Os mais desavergonhados chegaram ao ponto de chamar injustiça geracional a esta teimosia de os velhos receberem sem trabalhar.

Mas não são apenas esses os inimigos do "ajustamento". Também os trabalhadores do setor privado vivem acima das possibilidades e impedem os empresários de serem competitivos. Comprimindo os salários e aumentando os impostos o governo realiza o milagre de exportar mais e de importar menos. Estão a ver como é fácil? E quase não dói. E se doer, emigrem. Também dá jeito ao equilíbrio da balança de pagamentos.

Doentes, deficientes, estudantes, desempregados, beneficiários do RSI, todos eles devem, desde o levantar ao deitar, meditar nesta grande verdade: sou um peso para o contribuinte, tudo o que recebo devo-o à generosidade do governo que arduamente regateia uns trocos à troika para gastar comigo.

Não está esgotada a lista dos culpados. Há os jovens que se acomodam em vez de emigrarem ou arranjarem uns trocos em trabalhos desregulados. Os artistas que produzem obras que ninguém quer ver. Os cientistas que investigam coisas que ninguém entende. Os políticos e sindicalistas que tudo criticam e assustam os mercados. Exceptuam-se os políticos que dizem ámen e reclamam uma unanimidade que tranquilize os mercados.

    Glória aos heróis 

 Com tantos culpados da crise e tantos recalcitrantes contra os sacrifícios, é uma tarefa heróica fazer com sucesso o que o governo agora chama "ajustamento" e no início chamou mais ajustadamente "empobrecimento". É uma epopeia só comparável, na mente do impagável Paulo Portas, à gesta dos descobrimentos ou à revolução de 1640. 
Estes heróis, todos os dias louvaminhados pelos sabujos do costume, têm nome.
Em primeiro lugar temos a troika, essa sagrada coligação de benfeitores que não se limitam a mandar-nos dinheiro à suavíssima taxa de 4 ou 5%. Eles vêm também religiosamente ensinar-nos a governarmo-nos como deve ser e a não voltarmos a cair nos vícios do passado.
Em segundo lugar temos este governo obstinadamente atento e obediente aos credores e fervoroso terapeuta dos nossos desvarios preguiçosos e gastadores.
Temos também os empresários, sobretudo os maiores, que têm a máquina oleada para criarem (e descriarem) emprego ao sabor do aproveitamento duma mão-de-obra desesperada.
Temos os banqueiros, que devemos amparar com os nossos impostos até conseguirem sair do rombo em que se meteram, ampararem os empresários e recuperarem os lucros de antigamente.
Temos os estrangeiros de visto gold que fazem o favor de nos comprar uns casarões acima das nossas possibilidades e talvez deem emprego a algumas empregadas domésticas.

É nesta democracia que nos deixámos encurralar.
Se não vemos alternativa, se não lutamos por alternativa, então o 25 de Abril é uma memória morta.